Alice Sant’Anna nasceu no Rio de Janeiro em 1988. Publicou os livros de poesia Dobradura (7Letras, 2008), Rabo de baleia (Cosacnaify, 2013) e Pé do ouvido (Companhia Das Letras, 2016), além das plaquetes Pra não ficar na gaveta e Bichinhos de luz, e de Pingue-Pongue (2012), edição independente impressa em serigrafia, em parceria com Armando Freitas Filho. Trabalha como editora na Companhia Das Letras.
foto: Alexandre-SantAnna
Os poemas a seguir foram selecionados do livro Rabo de baleia, editado pela Cosac&Naify em 2013.
TREM NOTURNO
nós três rimos muito na cabine e nos assustamos quando o vagão para em uma estação erma, sem gente nos bancos, sem despedidas, o olhar duro do fiscal que dorme sozinho toda noite, o fiscal em sua cabine, sem casa ou mulher, espécie de marinheiro que não embarca em navio algum, que não fica a sós com horizonte algum, mas muito pior, esse fiscal que não pode se perder, está bem firme nos trilhos, em sua rota veneza-budapeste, que se estende por treze horas sem tirar nem pôr, o fiscal que nos recomenda trancar as três fechaduras da cabine, primeiro a de cima e em seguida a do meio, e nós achamos graça de tudo porque ninguém nos levou à estação ou nos espera na plataforma, não conhecemos absolutamente ninguém por estas bandas e por isso mesmo tudo é tão assustador e leve ao mesmo tempo, esse papel com frases em húngaro, algum comando incompreensível que não vamos seguir, as três com os olhos bem abertos fingindo para as outras que estão em sono profundo, quando na verdade as ideias dançam e trocam a ordem dos móveis na cabeça, se bem que provavelmente o único que dorme em todo o trem deve ser o fiscal, ou nem ele, duro que é, talvez prefira fantasiar com gigantes, maremotos
TITINA
1.
caminhávamos na estrada de terra
o dono da casa apoiado
numa bengala de madeira
parou e apontou para o lago
onde uma árvore seca continua seca
desde que compraram a fazenda
lá se vão trinta anos a árvore
seca no meio do lago
2.
aqui dá muita formiga saúva, s. disse
a verdadeira praga do brasil (quem disse?)
a formiga rainha é maior que as outras
e todas dependem dela de suas ordens
quando ela morre todas as outras morrem
por isso a melhor solução pra acabar com a praga
é matar a rainha
ela já nasce rainha?
como as outras são capazes de reconhecê-la?
s. não soube responder ou se distraiu
esmagando um inseto
com a ponta da bengala
3.
quando m. foi cumprimentar
a dona da casa ela falou surpresa
que ele era a cara do harry potter
vou chamar um mágico, ela gritou
e tomou a agenda o telefone
convidou-o para o dia seguinte
ainda que já fosse tarde da noite
todos sentados na sala de jogos às oito
em ponto à espera do mágico que vinha
de petrópolis
4.
era duro ver aqueles truques tão de perto
d. tentava a qualquer custo desmascará-lo
olhava cheia de olhos, deve haver algo
entre as mangas
jura que a bolinha vermelha
estava escondida no bolso do paletó
mas ninguém acreditava, a bola
surgiu do nada mesmo, o truque da carta
aparecer dentro do limão, como pode?
depois voltamos para a sala de jantar
vovó não estava com força
nas pernas, eu e g. a conduzimos
pelo caminho de pedras cada uma
segurava um braço
5.
o nome do cavalo era mistério
não contei nem a g. nem a l. a aranha
pendurada no teto
em um fio invisível a aranha
sobre nossas cabeças
poderia pôr tudo a perder
se bem que eles já eram craques
corriam na trilha de barro e aos poucos
éramos deixados pra trás: eu e mistério
galopávamos a toda para alcançá-los
o sol era forte e me deixou
a marca da camisa
*
a sandália nova branca com dedos
que se refestelam do lado de fora
como crianças que sabem o verão que vem
de repente a chuva míngua os planos
da calça jeans com sandália de dedo
uma combinação entre-estações
para não se sentir nem tão lá nem tão
cá os dedos curvados corcundas feito crianças tristes
as unhas recém-cortadas que planejaram
se mostrar sobre a cadeira de rodinhas
mas que nada a água inundou a sexta
da janela os bambus se movem muito
chegam a parecer desesperados
as folhas penduradas são cabelos colados
que gritam novas rugas onde nada havia
*
se ficar bem quieta
conto o que nos trouxe aqui
eu e ela
todas as palavras
roubadas da estante de cerâmica
da mais cara são objetos
que se lançam
com o risco de espatifar no chão
passei muito tempo tentando dizer
mas quando abria a boca o que pintava
era uma bailarina de caixa de música
que girava no ar contra a minha vontade
ela não sabe mas eu queria mesmo
era ser franca dizer que o sol batendo
na mesa é meu
os caquis na fruteira
os papéis que o menino do correio
lança por debaixo da porta
todas as coisas que posso
segurar isso é meu
*
abro o envelope
e espero praias grandes paisagens
sua letra miúda contando coqueiros
a data à caneta
marcando meses anos
que não nos vemos. mas o envelope
branco e frágil
traz estrela cadente na borda
anéis de saturno onde você talvez esteja
um homem-palito astronauta
boiando num céu estrelado. você talvez
tenha desenhado numa noite de lua
nunca vou saber
onde foi que gravou
esse sofá amarelo, essa porta de geladeira
numa cozinha de pedra são tomé
uma cadeira sobre fundo
de azulejos verdes. me pergunto
se diante de tantas paisagens
por que você só mostra
os cantos das casas por onde passou
nenhuma janela aberta
nenhuma amostra
se faz sol ou chuva
se aí também amanhece
Gostei muito de ler este texto poético! Engraçado, senti uma felicidade no decorrer da leitura. Me lembro ter tido esta mesma sensação quando li o Apanhador no Campo de Centeio.