Maria Eduarda Lima: carreto (2025)

Maria Eduarda Lima cresceu na praia do Janga, em Pernambuco. É jornalista, escritora e psicanalista. Mora em São Paulo, onde aprendeu que as mudanças cortam e costuram. Autora de “Cutícula” (2022), da plaquete “La Ursa: a história de um fim em cinco poemas” (2023) e “carreto” (2025).


Os poemas a seguir foram selecionados do livro “carreto” (2025), lançado pela Editora Primata e disponível para aquisição neste link.



SÓBRIA

o dia que eu parei de beber
tinha trinta e um anos e oito meses

não
o dia só tinha vinte e quatro horas

eu é que já tinha três décadas
e setecentos e quarenta dias

acontece
simplesmente acontece
de não entrar mais nada
goela abaixo

não dava certo com água
álcool
e suco

não passava
sprite
café
ou absinto

eu parei de beber
e comecei a engolir seco

até saliva me enojava
a única cachoeira que ainda me dava apetite
era você



QUASE DA FAMÍLIA

juliana
pede para ir para casa mais cedo
a fia tá com febre
falou para a patroa

a patroa é boa
mas lembra que quer o mousse de maracujá

juliana espera
a kombi durante sete minutos
o ônibus viaja por duas horas
a carroça de seu Joca leva vinte e sete minutos

juliana troca o asfalto
pelo chão de barro

a fia treme de frio
o corpo queima
juliana se rasga em unha
maldita mãe que é
vive longe
longe

longe
cuidando do fio dos outro
a fia doente
entende

ela sabe a mãe que tem

juliana não se perdoa
e pergunta para a fia
se ela quer ir para o médico

vão ali na roça
no único lugar que pega sinal de telefone

e chega uma SMS
“você errou o ponto da mousse, hein, Ju? =/”

juliana pensa em escrever
sua putinha mimada, você sabe o que aconteceu?

mas ela não responde
não pode
não quer

e sonha que na segunda
tudo vai melhorar
a fia esfria da febre
aquece o peito

a mousse vai virar cobertura de bolo
e a patroa, ah, a patroa

se deus quiser
a unha dela encrava



NUA

lembro com saudade
saudades imensas
daquele que me fez tanto mal

*

tenho acordado
cantarolando músicas
que não sei a letra

sempre às cinco da manhã

*

antes de dormir
me cubro com lençol
para que fantasmas
não transem comigo
enquanto durmo

*

a música que ele colocava para mim
aquela que ninguém conhece dos beatles
a única que ninguém conhece dos beatles

*

ou será que era tudo mentira

Primata