Pedro Tostes: Medusa – Na Casamata de Si (2018)

Pedro Tostes é poeta reincidente e insistente. Graduado Nos Rolês com PhD em Pilantropia Cultural. Seus crimes foram mais conhecidos como o mínimo (2003), Descaminhar (2008), Jardim Minado (2014) e sua mais recente contravenção Na Casamata de Si. Foi detido, averiguado e apreendido pelas autoridades por porte e comercialização de livros em prestigiosa Fresta Literária. Com a organização delituosa Poesia Maloqueirista, entre outros crimes, editou a infame revista Não Funciona, que realizou 20 golpes bem sucedidos com mais de 20 mil incidências literárias na primeira década do século. Apesar da aparência dócil e gentil, o indivíduo citado apresenta alta periculosidade. Sua cabeça está a prêmio. Caso o encontre, favor informar às autoridades.

 


foto: Renata Armelin.

 

O poema a seguir está presente em seu novo livro Na Casamata de Si (Patuá, 2018).

 

 

MEDUSA

 

Dias cinzas, dias frios
que espalham sobre as folhas
a fuligem,
não façam desse canto
mero desencanto na luta
do homem contra a Górgona
das engrenagens contínua;
mas brado de guerra
retumbante, retomando
os territórios do sentido.

Pois do alto de arranha-céus
eu vi tuas serpentes
se espalhando pelo solo
– Anacondas sufocando
os pesares nas carruagens
do tempo comprimido entre
as agendas.
Vi homens e mulheres
tomando pílulas de alívio
e felicidade, irmãos
rotos de esperança
buscando restos no lixo
e fazendo companhia aos
ratos, vi cérberos
adestrados latindo contra
inocentes, templos
erguidos ao Céu como
monumentos do caos e em
todos os cantos era
possível ver suas marcas.

As ruas tomadas de
estátuas inertes
caminhando – homens de pedra
no cachimbo se perguntam
na angústia o que sobra
dessa dor – comprovam
que a besta-fera domina
esta paragem
& destrói & destroça
tudo aquilo que encosta
– torna concreto
o desencanto secreto
do ser.

Sigo no contrafluxo
do tempo que sufoca os irmãos
iludidos pela sua imagem
no espelho;
me perco em seus recantos:
Anhangabaú, Carandiru, Tietê
Tucuruvi, Butantã
– nheengatu esquecido nas esquinas.
Eu sou o genocídio indígena,
sou Sepé Tiaraju & Borba Gato
& tenho nas mãos o sangue dos meus antepassados.

Tupiniquim de Araque
não confundo mais o cheiro da selva
com o óxido carbônico de tuas serpentes:
tu, monstro ctônico, cavalgada e cavalgante
sobre nós se constrói
pedra sobre gente sobre pedra
sobre gente sobre gente sobre
pedra sobre pedra sobre gente
soterrando os sentidos.

Por sobre os prédios vejo
Éris dançando ao alvorecer
seu balé diário;
eternos retornos apertados
nas lotações, vias & subterrâneos
do teu Hades;
sextas histéricas na volúpia da busca
vazia, repleta de hiatos buscando
no gozo dionisíaco
a argamassa que preencha;
fins de semana, desespero
do sossego que antevê uma
segunda depressiva
para Sísifo;
pequenas tragédias diárias
traçam retratos de Pompeia.

Quem entra e corrói
no cerne das horas
o fundo do humano?
Quem manda e a
mando de quem
que se mata
de frio de fome
de bala
qualquer irmão?
Por quem
dobram os Sinos
da Sé?

111 chacinas diárias
21 milhões de seres empedernidos
457 telefonemas não atendidos por segundo
232 estupros registrados por mês só na capital
1 trilhão de saudades
12 crises de choro por dia
7 bilhões de angústias
e em cada pessoa
transformada em estatística
eu sinto a sua presença.

O cheiro se alastra
pelo templo que é o corpo
e é o mundo também e logo
ouço o tremor no chão
com o peso dos seus temores
monstro à espreita
teu fino exército frio
engravatado
tecendo as mordaças,
vidas desperdiçadas
na miséria ou no luxo;
mas se Perseu sou eu
com que espada é que luto?
tenho apenas minha pena
de ser torto e ter devir;
era pra ter escudo
mas nos deram espelhos
eis que encaro seu reflexo
e vejo a face da besta:
era eu que ali estava
parado atrás de mim.

Cada fera tem seus mistérios
e a ti não deveria olhar
por não saber o que veria
e já que não te enxergo
me guio pelas sombras
e pelos ecos do teu ser;
não se sabe se é sina
ou ilusão a simetria entre
o homem e a besta,
mas quando o perigo
se aproxima não hesito
e arranco a cabeça
da Górgona enquanto
caio morto no chão.

E tudo que era você
e aquilo que te cercava,
suas raízes podres que daqui
se espalhavam lentamente
definham e desmancham
demolem cada alicerce
de tua torta estrutura.
E a chuva que desaba dos céus
alaga tuas ruas e esquinas
submersa a cidade desafoga
e das cinzas dos teus dias
surgem flores de Afrodite
que saúdam o novo tempo
mesmo no cheiro de podre
pois é da morte que surge
vida nova em teu solo.

 

 

José Antonio Gonçalves: Cavernas, Arenitos e Poemas (2018)

José Antonio Gonçalves nasceu em Mogi Mirim, SP, em 1941. Reside atualmente em São Paulo. Formado em Direito pela PUC, dedica-se à literatura há mais de vinte anos. Já publicou dois livros de poesia: O amor nos sertões: fragmentos (2010) e Eu que não creio, mas rezo contrito (2017).  Em 2018, lançou o livro Cavernas, Arenitos e Poemas, com poemas escritos a partir de 2016, que revela influência marcante de autores surrealistas e seus precursores.

 

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Cavernas, Arenitos e Poemas (EdLab, 2018), que integra a coleção Vozes contemporâneas, coordenada por Claudio Willer, pelo selo Demônio Negro e pela editora Hedra.

 

OURO INFILTRADO

 

                              Um anel vivo num dedo que vai morrer:      
                                            Herberto Helder, De antemão  

um sopro sobre o golfo embala
animais que caminham no céu
          o chão da noite continua áspero
          ofusca inquieto o horizonte

atmosfera de sonho
dominação do sono amigo da morte
o corpo em êxtase vence a fome

mãos frias
sem delirar
choram o olhar ausente nas pálpebras

o movimento impossível do braço
é cansaço que a mão trêmula
não ilumina

 

 

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Jeanine Will: Caminhão de mudança (2017)

Jeanine  Will, humana amadora desde 1975, poeta, tradutora. Nasceu em Santa Catarina e vive em São Paulo. Evadida dos cursos de letras português, artes cênicas, comércio exterior e letras alemão e do cursinho para medicina. Formada em tradução e interpretação inglês/português pela Unibero.
Desde 2006, mantém consigo uma oficina permanente de criação poética no blog http://www.caminhaodemudanca.blogspot.com. Lá publica seus poemas, fotopoemas, videopoemas, qualquer-coisa-poema e desenhos. Contato: [email protected].

 


foto: Lilli Ferreira.

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Caminhão de mudança (Córrego, 2017).

 

 

ABAJUR

 

a nave da noite pousa na terra
vermelhos queimam velozes
os olhos da cidade devoram arrazoados

deixa tua máscara de lado
mergulha no azul deste quarto
queima teus lábios na ponta dos meus dedos
arranha tuas mãos nas minhas palavras
deita teu ouvido sobre este sussuro
pisa de leve na pista
abre teu zíper até a angustura
dança de costas pro abismo

as sombras são apenas sóis introspectivos

 

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Marco Aurélio de Souza: Anjo Voraz (2018)

Marco Aurélio de Souza (1989, Rio Negro/PR) é autor de quatro livros, com destaque para os poemas de Anjo Voraz (Editora Benfazeja, 2018) e Travessia (Kotter editorial, 2017). Doutorando em Estudos Literários (UFPR), publica em diversos periódicos e participa, entre outras, das antologias 29 de Abril: o verso da violência (Patuá, 2015, poemas) e 15 Formas Breves (Biblioteca Pública do Paraná, 2017, contos). Atua como professor na rede pública do Estado do Paraná e vive em Ponta Grossa. Contato: [[email protected]].

 

 

O poema a seguir faz parte do livro Anjo Voraz (Editora Benfazeja, 2018).

 

 

NENHUM AMOR JAMAIS HESITA

 

 

Não, jamais eu hesitei no meu amor
Embora tudo fosse assim
Alguma dúvida fincada em meu peito
Latejando a incerteza por trás das cortinas
Exceto pela força infinita desse laço
Tão frágil, unindo a penugem
De duas crianças.

Como a cachoeira se derruba
Sem perguntas,
Aos olhos do novo
Somos alguma imensidão
Se revelando
Mediante um gesto que despacha
A dor de um dia cansado.

[…]

Mãe, o quanto em ti
Era a menina organizando suas bonecas
Antes de lavar a louça e varrer a casa
Procurando Deus no brilho dos móveis
Onde eu só via o esgoto da vida
Consumindo nosso tempo
De brincar?

Carregando o sonho da família em suas mãos
Você podia tudo
Desde que cantarolasse uma canção do rádio
Enquanto passava nossas roupas
Dando razão e sentido
Ao delírio da existência.

E porque eu era o filho
Tudo estava sempre em seu devido lugar
Vez que o trabalho exaustivo dos teus dias
Era tirar todos os frisos do silêncio
Domesticando a escuridão.
E atrás do pai, por isso, ainda o filho
Pedindo a ponta dos teus dedos
Em meu rosto assustado
De guri.

[…]

Falei com Maitê todos os dias
Enquanto aqui, longe de casa.
Sente saudades e dormiu com sua mãe
Como eu fazia com você
Quando um lugar à sua cama
Parecia vago.

Por um momento
Senti tua benção derramando
A eternidade em minhas veias.

[…]

Não, meu bem, nunca me esqueço do teu rosto
Quando à distância me renovo
No desejo íntimo de fuga
& autodestruição.

E será isso então tornar-se o pai?
Ser um agrimensor de todas as rotinas
Delimitando as fronteiras da morte
No pêndulo que oscila entre o refúgio
Da casa e a culminância de um gozo
Solitário?

Nem bem o dia se passou inteiramente
Neste quarto nauseabundo de hotel
E tua falta já emerge
No horizonte forasteiro
Contornada pela sevícia de um colorido
Em tudo estranho, insuportável.

Devia deixar este poema pra depois,
Sair comer alguma coisa na esquina.
Sei que será impossível.
Há uma beleza que se inflama
Na natureza das coisas.
Já estou longe, muito longe
E o amor jamais hesita.

 

 

Hilda Hilst: anos 1970

Hilda Hilst nasceu em Jaú (SP) em 1930 e faleceu em Campinas (SP) em 2004. Uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX, publicou vasta e versátil obra nos gêneros da poesia, da ficção, da crônica e da dramaturgia.

 

 

Realizaremos um breve panorama de sua trajetória poética, dividido em 5 postagens. Confira a primeira (anos 1950) neste endereço e a segunda (anos 1960) aqui. Desta vez, selecionamos poemas a partir de seu livro publicado na década de 1970: Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974)

 

 

Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974)

 

 

DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO

 

I.
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

 

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