Celso de Alencar: UM HOMEM CANTAVA PARA CACHORROS (2022)

Poeta paraense, radicado em São Paulo desde 1972. É reconhecido entre os grandes talentos da Geração de 1970. É autor dos livros de poesia Salve SalveArco VermelhoOs Reis de AbaetéO Primeiro Inferno e Outros PoemasSete (com 25 xilogravuras de Valdir Rocha), TestamentosPoemas PerversosO Coração dos Outros,  Desnudo e Um homem cantava para cachorros.  



Os poemas a seguir foram selecionados do livro Um homem cantava para cachorros (Pantemporâneo, 2022).

MERDAS

E agora, seus merdas?
Agora que a caixa de pandora
foi partida ao meio
e o grande segredo revelado
o que me dizem?
Agora que as árvores estão tombadas.
Agora que os pintores de faixas de rua
estão em greve contra os baixos salários.
Agora que as águas do Atlântico
chegam com extrema violência à praia
e arrebentam as calçadas e as
barracas dos vendedores de peixe frito
e sorvete de framboesa e morango.
Agora que a maldita mentira se vê exposta
sobre os grandes balcões dos bares
o que me dizem?
Seus merdas.


BEM DISTANTE

Um dia meu pai
despediu-se de seu pai.
Viajou para distante
e nunca mais o viu.
Eu, um dia
despedi-me do meu pai
viajei para distante
e nunca mais o vi.
Agora, as minhas filhas
viajaram para bem mais
bem mais distante.
Uma delas para muito longe.
Faz anos que está no céu.
Nunca mais a vi.
As outras, o mar nos separa.
Ainda que distantes
eu ainda as vejo.
Um dia elas dirão
que um dia
se despediram do pai.


UM HOMEM CANTAVA PARA CACHORROS

Era na Rua das Laranjeiras.
Na rua onde na tarde
as flores brotavam
e voavam como
pássaros recém-nascidos.

Era por onde passava o homem
com seus cachorros
pastores alemães pretos.
Pretos, pretos, luzidios,
com breves manchas
rosadas, claras, nos seus longos dorsos.

Passos largos, uma breve levitação,
imponentes, cabeças levantadas,
viam-se nos cachorros.
E molares banhados
de puro ouro artesanal
suas bocas enfeitavam.
Viam-se ainda coleiras brancas de crochê
enfeitadas com peixinhos
coloridos de aquário.

E nas patas traseiras, pulseiras de macramê
com seus nomes bordados
com fios vermelhos, carregavam.

Altos, silenciosos, como os ventos
que surgem por detrás das casas
incrustadas nas colinas,
assim eram os cachorros.

E caminhavam com um homem
que cantava modinhas imperiais
ou extensas canções do norte
ou o hino magistral da grande
revolução do povo
ou as marchas das velhas guerras europeias.

Um homem sem idade.
Tenor formado na antiga e fabulosa
escola pública nacional de canto lírico,
cantando para cachorros.

E todos nós o ouvíamos
e acariciávamos os cachorros
e falávamos os nossos nomes
e nossos apelidos da infância.
E o homem falava cantando
os nomes completos dos cachorros.
E nós e os cachorros ouvíamos
a grande voz ardente do homem
que vinha dos campos de arroz e milho
da vastidão do interior do país.

E cantava o homem.
E sentava na calçada
e ao seu lado
os cachorros cheios de silêncio
deitavam-se e diziam: papai.

Debaixo de um sono profundo, adormeciam.
E o homem passava as mãos paternais
sobre suas cabeças e pescoços e cantava.

Quando cantou
a longa marcha fúnebre
as flores não mais brotaram
e as laranjeiras pretejaram.



A ESPLÊNDIDA RUA DO GRANDE PÁSSARO



I

Sobre a Rua
do Grande Pássaro
desce o frio.
O sol está longe.
E a mulher na janela olha as nuvens
que, jogadas pelo vento,
deslocam-se em direção ao seu rosto.

II

Na rua passa a carroça transportando
as cinco ovelhas grávidas tosquiadas
e um gradeado de tábuas de eucalipto
com três galinhas brancas e dois galos
de penas pretas e cristas avermelhadas.

III

Um homem velho guia o cavalo pelas ruas do bairro
e as mulheres nas calçadas com seus filhos
aplaudem as ovelhas e gritam seus nomes
e as crianças correm atrás da carroça e dizem
as ovelhas terão bebezinhos e eles serão
nossos irmãozinhos ou nossos priminhos
ou nossos amiguinhos e nós estudaremos
na mesma classe da alfabetização primária e
vestiremos o uniforme azul e branco e
tomaremos o achocolatado com bolo de cenoura
às dez e vinte da manhã, e juntos cantaremos
o hino da independência e o hino da pátria nacional.


IV

Uma cobra desliza sossegada no chão molhado e
as mulheres gritam e se estremecem e lagrimam
e os meninos dão-lhe chutes violentos na cabeça
e pisam-lhe o corpo e matam-na.
E a cobra ensanguentada e pisoteada
fica deitada sobre as folhas do chão molhado.
E o cavalo continua puxando a carroça.
E o homem velho à frente.

Primata

2 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.