Fabiano Calixto: Fliperama (2020)

Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 8 de junho de 1973, e vive em São Paulo. É poeta, editor e professor. Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014), Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014) e Fliperama (Corsário-Satã, 2020). Divide, com a poeta Natália Agra, os trabalhos da editora Corsário-Satã, a casa e os cuidados com os gatos Bacon Frito e Panqueca. É um dos editores da revista de poesia Meteöro. No campo musical, está preparando o primeiro disco de sua banda de rock, o Gabiru Attack, e, ao lado de Leoni, Lourenço Monteiro e Humberto Barros, participa do coletivo sonoro O Hipopótamo Alado.



retrato digital de Pedro Mohallem


Os poemas a seguir foram selecionados da obra Fliperama (Corsário-Satã, 2020).




A FLOR HENDRIXIANA


flor verde-roxa, flor
que rasga a rocha

abre as asas do real
(oco, coxo, capenga)

dá floração, pistilo
ao que era só sombrio

adormece a cidade sob
um lençol de estrelas

pequenas vitórias, roteiros,
iluminações, magias menores

o tempo, osso e medula,
terrível e mínimo pesadelo

(dub bud) pétalas
e cheiros de frutas doces

folhas de luz verde
cálices de êxtase

medita, sobre os escombros
do século triste, na calma, a flor

expira, no arroubo da abelha,
seu ouro, seu alfabeto de sóis



O SILÊNCIO DE SÓCRATES

Para o Doutor Sócrates, maestro da camisa 8



o silêncio de Sócrates
incendeia Atenas
afaga rasgos de fogo
na superfície das estrelas

o silêncio de Sócrates
testemunha o último
e pesado sono do sol
(difícil ofício fúcsia)

o silêncio de Sócrates
no derradeiro declínio
flutua feito brisa leve
seu entardecer sanguíneo

o silêncio de Sócrates 
– mil dobres de um sino –
abre florestas e dias
nas fendas do destino

o silêncio de Sócrates
calcanhar libertino
em noites cítricas
de verões campesinos

o silêncio de Sócrates
joga luz e mostra
o que a galáxia sonha
quando cria uma ostra

o silêncio de Sócrates
resiste de pé, esperto e vivo,
polindo seus abismos,
suas flores de fé e explosivo




MATINÊ PERDIDA


foi tudo tão passageiro
como passos de pássaros no telhado
como um f mal desenhado
no caderno de caligrafia
da terceira série

você com seu vestido vermelho
hálito de drops de menta
perfumando tantas dúvidas
e um sorrisinho modernista de nascença
como um contrabando
uma contradança

eu, com meu tênis velho
camiseta desbotada do AC/DC
dois ou três carinhos de colibri
um minuto de silêncio por minuto no peito
uma lua cheia
na carteira vazia

foi tudo tão passageiro
aquela canção do Frank Valli
a soda com limão e gelo
o bolo de brigadeiro
a festa junina no nosso quarteirão
os amigos que já não estão mais
nem aí
nem aqui
o copo cheio de tônica e gim
a coleção de gibi

foi tudo muito passageiro
mesmo com cinquenta fichas
a ligação sempre caía
e chorávamos escondidos
cheios de dor e uísque
sob a concha do orelhão
e nossa oração
dois mil enigmas
nos lábios de amianto
de uma esfinge

a matinê perdida
domingo tecnicolor
deitando sol em nossos sonhos
(o velho domingo e sua gravata florida
agora, apenas uma breve brisa,
uma ferida
mertiolatada)

na pista esperávamos as lentinhas
para poder alimentar o amor
que morava na gente
como um cão sob a marquise
mora no rosto da chuva

o primeiro beijo veio a navio
o coração disparado
o calor suando frio

foi bonito, foi tudo muito bonito
(na verdade, foi bonito pra caralho)
e passageiro
como Sessão da Tarde e pipocas
bolinhos de chuva e catapora
como os sapos que a tempestade traz
para ninar o nosso naufrágio

tudo muito passageiro, sim
mas nunca frágil
continuamos lendo
nossa saudade em cada lenda
e fomos cada qual por sua trilha
nós todos, tombados pelo patrimônio histórico
das coisas do coração

hoje
vemos a areia da vida surfar no abismo
de uma ampulheta
que vai daqui
até as estrelas


POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE PORTAL


João Cacimba saiu para dançar
numa noite fria de inverno
o vento urrava pelos becos
revirava as manchetes
e os estômagos
acariciando a decadência febril
dos nacos perdidos
da civilização

no fundo nebuloso
do universo

dançou dançou dançou
bebeu comeu bebeu mais
fumou um fodeu
bebeu bebeu bebeu
tragou a brisa selvagem do ciclone
fitou o luar

à porta da manhã
à boca do metrô

(súbito)

deu o peido mestre


MY-MY KIND OF GIRL

Junto a gente se orienta – na jukebox da eternidade

meu amor, minha dália
meu rock’n’roll, minha tropicália
meu par contra a dor canalha
minha guerra, minha batalha
brisa fresca dos campos da Itália
minha carne, minha navalha
meu carnaval, minha Saturnália
meu verão azul na Cantuária
minha linda Vênus de Sandália
minha companheira de Maracangalha
meu pôr do sol na Somália
minha flor, meu amor, minha bertalha
floramarílis floranêmona florazálea
segundo coração, onde a manhã orvalha
meu par na contramão, meu amor, minha Natália

Primata

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