Jéssica Iancoski: irreVERsível (2022)

Jéssica Iancoski é escritora, poeta, artista gráfica e editora. Em 2022, foi finalista do Prêmio Jabuti (poesia) e vencedora do Prêmio Candango de Literatura (Capa). Tem participações em antologias, jornais e revistas. Já publicou no Brasil, Argentina, Colômbia, Espanha, Galiza e em Portugal. É idealizadora do Toma Aí Um Poema (podcast, revista e editora) e responsável pela primeira publicação de pelo menos 1k de autores e autoras. Já produziu e distribuiu mais de 1600 poemas para o audiovisual, em plataformas como Spotify, YouTube, Instagram e TikTok, somando mais de 1 milhão de acessos.


Os poemas a seguir foram selecionados do livro “irreVERsível” (Toma Aí Um Poema, 2022).



AMAVISSE

(à espera da tua fome)


depois de tudo, tentaremos todos voltar
— à luz que um dia nos foi dada

aos poucos, chegarão as gentes reivindicando
— a péripla da conquista: este andar em volta:
exaustivo, inaudito e salivoso do verbo amar

como o dedo que em círculos dissolve o mel
e o açúcar, cada um há de absolver o amor antigo
— findo, partido, sofrido — e reviver a dissolvência

da paixão: aquele primeiro grito devolvido:
a sofrência, a clemência, o perdão

no instante interminável da penumbra
o peito tingido de vermelho — ainda que imperfeito —
há de berrar — sempre — mais alto



SAPIENDS


o relógio na galáxia da vida
ainda não marca nem meio-dia
e veja tudo o que o homem já fez

primeiro chegou ao crânio desenvolvido
e conquistou a capacidade de raciocínio
a criação a ficção o era uma vez

depois veio a sede pela conquista
a estratégia a disputa as primeiras guerras
e assim sucessivamente até pôr o fim numa era

— o homem conseguiu ser o único na terra —

então o delírio a destreza a grandeza
sempre a permanência na destruição
e a mesma convicção no poder de que

— é preciso tirar para ter —



AS TRÊS MAIS AMADAS


há três palavras de amor
que esperamos ouvir de todo homem:


sobre o genocídio dos povos originários
sobre a escravidão e o nazismo
sobre a conversão forçada ao cristianismo
sobre a submissão da mulher

reconheço que errei

ao invés disso
a omissão o silêncio o flerte adorável
a tomar a frente & o verso
como quem inventou o progresso

há três palavras de amor
que esperamos ouvir de todo homem

e enquanto aguardamos — pacientemente —
eles caminham rente ao próximo grande erro da humanidade



AUTOTRÓFICO


numa tardinha, a sentença virá e será perpétua
todos se fecharão como o silêncio absoluto da pedra

perto do fim, a tempestade de sujeira que tumultua:
a poeira preta avança pelas casas & pelas ruas

ao redor, nenhuma voz para entrecortar o remorso
— Deus não surgirá para perdoar os numes nossos

das multidões restará apenas um único testemunho:
o ser que — antes da noite — depôs o seu rumo

e a vida ao final de tudo sempre a renascer do musgo



RENDIMENTOS

(2022, à Serra do Curral)


irreversível — o futuro será profundo e dolorido
como essa vida que desde o início se sabe perdida

pouco após a partida: em nosso destino final
seremos homens rendidos à matéria mineral

o nome da pedra em moto perpétuo por um triz
tentando eternamente retornar à rocha matriz

um simples dorso que se decompõe perecível
para a carne vencer a rocha é tarefa impossível

somos futuros farelos de pedra & festejaremos
a morte sem nunca possuir a certeza da sorte

de manhã a luz nos atravessará: seremos o resíduo
quem sabe o cristal — na posse do próximo mortal

Primata