José Antonio Gonçalves: Cavernas, Arenitos e Poemas (2018)

José Antonio Gonçalves nasceu em Mogi Mirim, SP, em 1941. Reside atualmente em São Paulo. Formado em Direito pela PUC, dedica-se à literatura há mais de vinte anos. Já publicou dois livros de poesia: O amor nos sertões: fragmentos (2010) e Eu que não creio, mas rezo contrito (2017).  Em 2018, lançou o livro Cavernas, Arenitos e Poemas, com poemas escritos a partir de 2016, que revela influência marcante de autores surrealistas e seus precursores.

 

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Cavernas, Arenitos e Poemas (EdLab, 2018), que integra a coleção Vozes contemporâneas, coordenada por Claudio Willer, pelo selo Demônio Negro e pela editora Hedra.

 

OURO INFILTRADO

 

                              Um anel vivo num dedo que vai morrer:      
                                            Herberto Helder, De antemão  

um sopro sobre o golfo embala
animais que caminham no céu
          o chão da noite continua áspero
          ofusca inquieto o horizonte

atmosfera de sonho
dominação do sono amigo da morte
o corpo em êxtase vence a fome

mãos frias
sem delirar
choram o olhar ausente nas pálpebras

o movimento impossível do braço
é cansaço que a mão trêmula
não ilumina

 

 

ÁGUA VIVA

 

Mas o instante é um pirilampo
que acende e apaga.

O instante é o tempo imobilizado cada vez que a roda do carro veloz toca a estrada. A vida só é percebida com intensidade quando em contato com o movimento. Uma súbita consciência desse movimento suave (água viva, ou água vida) é suficiente para vislumbrar a eternidade. A presença da vida se concentra. Tenho, então, no intervalo entre a parada e a partida, aquela fatia doce do paraíso.

Atentar para o apagar e o acender é uma forma de ascender.

No escuro nem sempre é a morte que vence. Quando a luz do pirilampo apaga, a espera de nova luz contém outro acontecimento mágico: a leve crença no infinito.

Ouço a vida passar o seu silêncio. Nada vejo a não ser um frágil latido de cães. Também assombram os passos silenciosos dos cavalos selvagens. A aceleração dos motores do avião anuncia um pacto com algum demônio. Reuniões preparatórias perto do céu. Encontro liberdade ao perceber as sombras assimétricas das grades da minha prisão impressas no cimento.

Preso no mundo, eu sou o outro em silêncio. Luto para sair do emparedamento. Nesse ambiente escuro não sinto mais a presença do outro, talvez eu mesmo. Nesse instante o silêncio vence qualquer tentativa de narrativa. Existe apenas o toque da luz sobre a superfície brilhante e morta.

Os vitrais conversam com os portais. Ambos sob tensão. Surge uma aura. O tom de verde insiste em provocar visões inesperadas. A harmonia das linhas reflete a vontade que guiou o início dos movimentos da mão direita do pintor. Sua outra mão paralisada concentrou a energia necessária para continuar a obra. O desenho foi transferido para o vidro. As cores invejam as palavras que não consigo pronunciar no instante certo. A visão das primeiras luzes, que faíscam ao ultrapassar os vitrais, me faz pensar em uma vida nova.

 

 

JANTARES

                                 Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
                                                   Hilda Hilst, Do desejo

 

um copo de carne
           soberbo alarme de lascívia

um corpo na água
           meu peito

estorvo que incomoda gemidos
          pontas e patas prontas para voar

esta tarde na cidade
          duas espadas

chagas secas
         cavalos em disparada

ódio e ouro líquido
         rio crepuscular

magia de morte rápida
         lagos em terra estrangeira

morrer de amor louco
         espelho molhado em sangue impuro

poças de lama
 com água fervente
        meus passos em direção aos desenhos

enigma de listas roxas
        terror de novas pegadas na praia

caminho de areia que acompanha o labirinto
signo da descoberta
        feras soltas no campo
        dominadas por fios ruivos de seda

faz de mim sua armadilha
       dança de desejos
       depois da escalada

o poeta sutura suas feridas
       na agonia da humildade dos afogados

 

 

 

 

 

Primata

2 Comments

  1. Quero urgentemente os livros do poeta José Antonio Gonçalves. Posso comprá-los em que lugar? Certamente não o encontrarei na Cultura, nem na Martins Fontes, não?Ele é um poeta de fôlego. Poeta maravilhoso.

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