Mariana Varela lançou, com 26 anos, seu primeiro livro de poemas pela Editora Primata, intitulado Tempestade Musicada. Os seus poemas constelam viagens e labirintos filosóficos bem musicados, atravessando com emoção e revolta questões existenciais e concretas da experiência feminina nas cidades e no mundo contemporâneo.

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Tempestade musicada (Editora Primata, 2018)

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ROTINEIRA CONTRADIÇÃO
Cheia de arte
de palavras
cheia de rimas
de conexões lógicas impróprias 
Cheia de vida
cheia de raiva
cheia de fome 
cheia de vôo 
cheia de rios, lotada de sonhos 
e ilusões 
(a liberdade na terra se esconde 
e a felicidade se torna
a tranquilidade vazia
da repetição) 
Estou farta, porque tranquila 
estou cheia, porque ausência 
liberta, porque aprisionada 
E fracassada porque nasci
na selvagem vida dos homens 
e sou fêmea, que carinho 
– Eu estou cheia 
porque a vida 
Vazia 
SALIVA MUSICADA
Eu que às vezes quero molhar meus dedos entre teus discos todos e cuspir na boca seca entoando um canto com teus olhos mansos 
Porque tem dias que não posso mais 
esbravejar goteiras dessa casa toda em aflição 
meu corpo fraco para suportar o concreto exposto, 
asfaltado e sagrado
dos dias iguais que se precipitam noite 
esperando estranhos balbuciarem o que não se diz
não, não cabe meu querer dentro desses desentendimentos 
e eu queria só deitar, falar, dormir e rir
 sem me preocupar com os problemas e sinais
 de uma comunicação insuponível 
pois
insuponível é meu desejo aos olhos de uma língua toda 
meu querer deitar, medíocre
sob o céu em festa e carinho só 
eu escreveria, somente, no meu mundo
que faria calor sob o verde da grama 
e eu mergulhava no lago aqui em frente
não sei
que mundo é esse anunciado a minha frente 
que vive a fugir dos meus dedos que precisam 
mergulhar nos teus discos para molhar a boca 
meu coração, solitário passante de uma vida fraturada 
tão melancólico de olhares atentos
queria ouvir bater junto à terra 
o mar, a água, tuas costas
 tuas costas, quero pôr-me a deslizar 
correr entre barcos e entre rochas 
eu quero transformar-me no infinito vir 
das ondas 
supor vazios a encontrar presentes
quero abandonar as casas que morei
e viver entre o meu silêncio e o meu encontro 
quero juntar-me mas não sei estar-me 
quero viver-me mas não sei quem sou 
eu quero, minha alma junto às pedras
a solidão do cais
sentada na beira do rio, só duro no tempo 
não quero mais
que a vida exposta me negue os ossos 
meus companheiros
acinzentados sobre os muros da cidade 
queria dar-lhes asas 
com qualquer palavra que transforma num acorde romântico 
um momento doente 
eu queria
explodir em folhas verdes robustas e primaveris 
os canais esgotados de lixo 
sinalizar o mar para os olhares perdidos 
voltar à terra com meu corpo em paz 
que não quero perder meus passos encantados por teus brincos 
não quero jogar o jogo para sentir-me viva 
eu não quero amar para ser amada
 e nem quero os olhares atentos sobre os meus cabelos loiros 
não quero o poder desse cotidiano louco 
a que chamaram a repetição maluca
de vidas agora suponíveis 
não quero essas bases em que estão fundadas as cidades 
não quero a linguagem, nem as posições
não quero o jogo nem quero as brigas
sobre o viaduto das tuas grandes construções 
eu não
entenderei os teus trabalhos
e acho que também desencantarei amigos
com meus olhares frouxos em dias precipitados 
que gosto mais do desconhecido do que do conhecido
e queria perder-me entre conversas vãs e reconhecimentos nulos 
não sou nem estarei
não caibo na cédula da tua identidade
e não caibo no espaço desse registro que me fazem 
se sou quem sou não quero mais 
que a vida me diz muito diferente 
esse meu quase,
insistente como a pulga de marte
e os meus pés confusos quando precisam ficar
querem andar. 
A BUSCA DA PALAVRA
a Busca da palavRa
Eu renasceria no rasgo desse silêncio:
 inventaria uma palavra pra derramar na realidade oca 
um presente sublime 
Para isso, um momento de nada:
tudo eco e silêncio como a praia deserta 
e o mar que se debate em si mesmo 
Meus ouvidos querem ser surdos 
minhas pernas querem ser água 
minha alma quer ser grama 
eu quero ser nada
Tudo fala, à minha volta,
e meu corpo insiste em rebatê-lo 
enquanto isso meus pés tentam voar 
num mundo que morre fincado 
Eu cantaria, para esquecer
uma nova sinfonia, uma nova arte 
Mas eu calaria, por lembrar 
que estou caindo, como sempre, 
sob um chão que é água 
movendo, como sempre,
uma pedra que é morte 
Assim estou destinada à palavra 
para coroar o que está enterrado. 
Para perdê-las no ar,
Não quero mais palavras… 
Nem para dizê-las, não as quero mais
que quando saem de mim viram todas mariposas 
que entre o meu corpo e o teu
vão voando tortas, embriagadas
e passo o dia tentando batê-las ou arranjá-las: 
esforço inútil.
Eu quero inventar uma palavra
 para rasgar com graça essa vida medíocre 
mas busco nela também a quietude. 
Porque não posso dizê-la
 na praça ou no caminho para casa, 
essa palavra que quero inventar 
Quase não posso criá-la 
porque meu corpo prende o meu espírito, 
que quer visitar Alexandria…
Porque meus livros estão na Pérsia,
e não sei que Deus há lá! 
E porque a caneta precisa do tempo 
de um relógio surrealista. 
A palavra está atada a um eu que me ultrapassa 
e destrói o pensamento. 
E os meus pés estão grudados
no chão frio da casa do Dragão, Tu-Deves
que repousa em mim as perguntas sobre o tempo. 
Uma palavra, eu escreveria
como quem aspira a brutalidade do gesto mais delicado
e me insiste a viagem 
Uma palavra com coragem o suficiente para gritar o absurdo 
e nascer muda. 

linda linda escrita! é palpável e preenche
Muito bom!