Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira em 1902 e faleceu em 1987 no Rio de Janeiro. Escreveu, dentre muitos outros, os livros de poesia Alguma Poesia (edições Pindorama, 1930), Sentimento do mundo (Pongetti, 1940), A Rosa do Povo (José Olympio, 1945), Claro Enigma (José Olympio, 1951) e Boitempo (Sabiá, 1968). É um dos mais influentes poetas brasileiros do século XX.
Os poemas a seguir foram selecionados do seu segundo livro Brejo das almas (Os amigos do livro, 1934). Confira as postagens de suas outras obras neste endereço.
AURORA
O poeta ia bêbado no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também iam bêbadas.
Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
Que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.
O poeta está bêbado, mas
escuta um apelo na aurora:
Vamos todos dançar
entre o bonde e a árvore?
Entre o bonde e a árvore
dançai, meus irmãos!
Embora sem música
dançai, meus irmãos!
Os filhos estão nascendo
com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).
Dançai meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento.
SOL DE VIDRO
O coração na sombra do relógio,
que será de nós, que será de vós,
as virgens passam implorando
o soldado morto na colina.
Vem de ti o rumor sem número,
pontes, archotes, o que será mais,
música e tarde para o fim,
este instante não é o soluço.
Quieto no tempo um lampião
acende as mulheres atrás dos copos,
você sempre com a mesma boca
não por que pressentimento
acorda, Princesa, é o sol de vidro.
HINO NACIONAL
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonnettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas.
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas…
Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
EM FACE DOS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS
Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
Que o nosso avô português?
Oh ! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros,
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.
A tarde pode ser triste
e as mulheres podem doer
como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).
Teus amigos estão sorrindo
de tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
Fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados
que o melhor é ser pornográfico.
Propõe isso a teu vizinho,
ao condutor do teu bonde,
a todas as criaturas
que são inúteis e existem,
propõe ao homem de óculos
e à mulher da trouxa de roupa.
Dize a todos: Meus irmãos,
não quereis ser pornográficos?
SEGREDO
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
NECROLÓGIO DOS DESILUDIDOS DO AMOR
Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia…
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.
REGISTRO CIVIL
Ela colhia margaridas
quando eu passei. As margaridas eram
os corações de seus namorados,
que depois se transformaram em ostras
e ela engolia em grupos de dez.
Os telefones gritavam Dulce,
Rosa, Leonora, Carmen, Beatriz.
Porém Dulce havia morrido
e as demais banhavam-se em Ostende
sob um sol neutro.
As cidades perdiam os nomes
que o funcionário com um pássaro no ombro
ia guardando no livro de versos.
Na última delas, Sodoma,
restava uma luz acesa
que o anjo soprou.
E na terra
eu só ouvia o rumor
brando, de ostras que deslizavam,
pela garganta implacável.
SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA
Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.
Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.
Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa
com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
O PASSARINHO DELA