O QUARTO
DENTRO DA PLACENTA
para Matheus Nachtergaele
às vezes é quase tão difícil
como reemplumar o passarinho
que seu gato depenou
enquanto você falava ao telefone
outras vezes, no entanto
lhe é dada a oportunidade
de oficiar o rito
decifrar o enigma
criar por duas horas
a ilusão de que você
está no comando
de que é capaz de ordenar
os símbolos da vida
por conhecer as palavras mágicas
por saber dançar
dentro da placenta
geralmente eles torcem a seu favor
vieram para oficiar junto
mas nem sempre você dança
no tempo exato
nem sempre acerta
a pronúncia da fórmula
então a loucura do mundo
os requisita novamente
eles regridem
emburrecem
tornam-se cruéis:
estão ali para julgá-lo
porém difícil mesmo
é emprestar a voz
a quem saiu de cena
entrar no tom
de quem cortou a garganta
e secou todo o leite
do peito e dos colhões
falar em nome
de quem se calou
ou partiu antes da hora
por fastio ou cagaço
quando as penas já se foram
e não há filtro que corrija
a tristeza do obstetra
MAIS MAGRO
mais magro
meu amigo está mais magro
volto a encontrá-lo
dois ou três verões mais tarde
e chego mesmo a dizê-lo:
você está mais magro
problemas de intestino…
responde-me esquivo
… já estive pior, agora
voltei a engordar
não peço detalhes
mas vejo o ombro mirrado
entre as alças da regata
evito tocá-lo
pois a mera proximidade física
parece estranha agora
que meu amigo está mais magro
novamente juntos
caminhamos pela orla marítima
eu lhe recito algum verso
ele me ensina outro insulto
e há quase alegria de trégua
não fosse o fato
de ele estar mais magro
se ainda ontem tocassem
os telefones insones
na barra da madrugada
e meu amigo dissesse
palavras de testamento
eu sairia correndo
para deitar-lhe compressas
na testa já repartida
se fosse eu o afogado
dentro da onda invisível
de bílis, lua e silêncio
ele pagava o resgate
limpava o sal de meus cílios
me devolvia em segredo
sobre a toalha mais limpa
mas hoje estamos exaustos
há um dreno em nossa bondade:
minha boca só tem dentes
e meu amigo
está mais magro
MANGA
a manga chupando o cão
não deixou um só fiapo
não era lua cheia
nem sentiam saudades
os ossos enterrados pelo cão
em pleno quintal
na noite anterior
a manga não era rosa nem espada
mas chupou
chupou o cão até o caroço
a manga era carlotinha
e recendia com violência
machucadora, cheirava alto
derrubando os sentimentos do cão
a manga chupando o cão
jogou os dentes sobre o telhado
mas abriu toda a gengiva
sobre o meu peito
QUANDO O AMOR RECUPERA A VISÃO
tão logo alguém se aproxima
joga-se no chão
finge ter sido espancado
roubado até o último vintém
se o ajudam a erguer-se
abraça a alma caridosa
esvaziando-lhe a bolsa
o maligno o arrasta
através do fogo
através do vau e do redemunho
do lamaçal e do charco
põe facas em seu travesseiro
ratoeiras em sua sopa
ele também
não faz por menos:
bebe pinga com o cachorro
joga dados viciados
cede o corpo a proxenetas
é fustigado nos albergues
nos hospitais públicos
e posto na rua a pontapés
quando o amor recupera a visão