Marcelo Montenegro nasceu em São Caetano do Sul (SP), em 1971. Além de poeta, é iluminador de teatro e roteirista de TV e cinema. Com o guitarrista Fabio Brum, lançou o CD Tranqueiras líricas, baseado no espetáculo homônimo em cartaz há mais de dez anos. 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Forte Apache (Companhia das Letras, 2018).

Três pensatos
1.
PENSO naquela única gota
gelada do chuveiro quente.
Nas ilíadas clandestinas
que a febre percorre
até virar suor. Penso nas caretas
que os músicos fazem
quando estão solando.
No meu pai me dizendo
que tudo isso aqui era mato.
Penso na imagem exata
de uma aurora indecisa.
Penso em calços de papelão
para pianos mancos.
2.
PENSO em alguém que, na manhã
do dia de sua morte, desiste
de usar a camisa que mais gosta,
preferindo guardá-la para uma festa
que terá na noite seguinte.
3.
PENSO em você, por exemplo,
largando o controle
remoto e dizendo –
do jeito mais lindo
do mundo – que adora
quando consegue pegar
um filme do começo.
BRUXISMO
 Isto podia ser outra coisa. Uma bebedeira, por 
exemplo. NÃO, não uma bebedeira, mas o começo 
encantador da embriaguez. Um dia bom, qualquer 
motivo, a vida irrigando o corpo com nicotina. 
Podia ser uma baleia encalhada na praia 
do amor. Um pote de raiva esquecido no sótão. 
Podia ser uma antena em estado de coma. 
Ou cacos de vidro num fliperama. Um fotógrafo 
desolado por não estar com sua câmera 
naquele momento. Ou um menino sentado 
na ponte, balançando os pés ao som de si mesmo. 
Podia ser uma seleção de crônicas publicadas 
em lugar nenhum. Um deus discotecando 
instantes. Um hidrante aberto no agora.  
Podia ser uma mulher suspendendo a barra 
da calça para saltar uma poça. Aqueles insetos 
que morrem após a picada. Uma adega de  
ausências que o tempo elabora. Podia ser 
um exame que, buscando uma coisa, diagnostica 
outra. SIM, podia ser isso tudo. Uma solidão 
acesa no abajur da melodia. Um macaco 
se olhando na água no primeiro dia do mundo.
SANATÓRIO MONTENEGRO
Quando você percebe que algumas pessoas adoram
 deixar informações adicionais, e aparentemente
 despretensiosas, num canto do assunto, como
 quem não quer nada, só para impressionar.
 Quando você se sente como naqueles filmes
 em que o panaca é confundido com alguém
 importante. Sua marcha atlética ridícula entrando
 por engano na pista dos 100 metros rasos.
 Quando se pega mijando no poste porque o
 banheiro está sempre lotado. Quando rouba
 um olhar constrangido – lindo – da mulher
 que ajeitava os cabelos na porta de vidro do metrô.
 Quando imagina aquele amigo do Kafka falando
 com ele: – “Não, não vou queimar seus gritos.
 Seu riso tímido de nicotina na garrafa térmica
 da repartição”. Quando acabou de ver as horas,
 mas não lembra que horas são. Quando,
 esperando para atravessar a rua, você fica vendo
 as janelas dos carros fatiarem seu reflexo. 
