Ana Rüsche – num quando

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Leitura de Ana Rüsche no evento Desconcertos de poesia, organizado por Claudinei Vieira no Patuscada – Livraria, bar & café, dia 19/07/2016.

 

NUM QUANDO

a cirurgia foi um after hours, mas estou
acostumada a ir dormir tarde
acho que os médicos também, tão animados
fui sim até o centro cirúrgico bem acordada e
fiquei acordada, sinto a hack entrando
entrando…
ainda ao longe, bem corajosinha, uma conversa
sobre qualquer coisa, luzes nos olhos
para que me sinta bem iluminada, bem disposta
de súbito lembro que não fiz depilação, e isso me
envergonha mortalmente
seria tudo filmado e colocado no youtube da
faculdade de medicina, ririam de mim
mas tenho de explicar – foi de urgência a
cirurgia, não houve tempo
nunca há tempo para nada nessas terras, apenas
para ficar ali, suspensa
e, afinal, não tenho namorado, foi uma urgência,
acontece

no início me estacionaram com o carro-maca ao
lado de um cara paciente também
podíamos até começar ali um romance,
lembro de ter desejado ao final “boa sorte, moça”
e isso acabou já com tudo, que bobo
ele morria de medo, ia retirar uma pedra do rim e
não se rendia a dormir
eu logo disse, ah, comigo também pensaram que
era cálculo renal, pela dor,
mas  depois viram que era uma laranja na
barriga que eu tinha…
de súbito lembro que removeram o cara paciente
com seu carro-maca e com seu medo
e fiquei pensando num poema do zukofsky, sobre
uma laranja e o sol e a letra a
e estava já chorando, desesperada por estar sozinha
e confundindo os poemas, estar tão sozinha,
e a dor, bem, isso é com as mulheres

Ana Rüsche (2005-2013)

Ana Rüsche nasceu em São Paulo em 1979. Publicou os livros de poesia Rasgada (Quinze & Trinta, 2005), traduzido para o espanhol pela Editora Limón Partido, em 2008, Sarabanda (Selo Demônio Negro, 2007), reeditado pela Editora Patuá, em 2013, Nós que adoramos um documentário (Ed. Ourivesaria da Palavra, 2010) e Furiosa (Edição da autora, 2016), seleção feita pela autora de seus poemas anteriores. Tem também um romance, Acordados, publicado pela Editora Amauta em 2007, com apoio PAC – Secretaria de Estado da Cultura, fazendo o livro circular através de seu projeto de distribuição por contrabando.

É doutora em Letras, ministra oficinas de criação e cursos sobre arte comtemporânea e, como diz, “faz o próprio pão, a própria cerveja e mora com seu cão”.

Conheça mais de seu trabalho em www.anarusche.com

 

 

 

O POEMA BRANCO

e ela montada
no topo da bicicleta ergométrica
uma caixinha de música
laqueada como gelo
a rodar, a esperar
a agulha hipodérmica de endorfina
para capar seu coração.

um romance raso.
eu queria ser um esquimó
mas entre uma faísca e outra,
o frio da estroboscópica,
a solidão me dá picadas
uma cocaína negra com mel
que me anima.

minhas mortes são semanais.
em lençóis alugados por pernoite
no degelo de teus cabelos negros
de latin lover

e como você faz a tantas donzelas
teus dedos apalpam
minha pequena morte úmida
e lhe aplicam um
grito seco na canção de rádio pela tarde
olhos pretos cheios de branco

mas agora é escuro
pela pia de mármore duro
ela derrama a borra de café
que se transforma em terra
e embala os natimortos de nossos sonhos

um romance raso.
e ela entediada roía unhas
na internet os esquimós
seus pés assustadoramente descalços.

 

(do livro: Sarabanda. São Paulo: Editora Patuá, 2013.)
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