Ana Rüsche (2005-2013)

Ana Rüsche nasceu em São Paulo em 1979. Publicou os livros de poesia Rasgada (Quinze & Trinta, 2005), traduzido para o espanhol pela Editora Limón Partido, em 2008, Sarabanda (Selo Demônio Negro, 2007), reeditado pela Editora Patuá, em 2013, Nós que adoramos um documentário (Ed. Ourivesaria da Palavra, 2010) e Furiosa (Edição da autora, 2016), seleção feita pela autora de seus poemas anteriores. Tem também um romance, Acordados, publicado pela Editora Amauta em 2007, com apoio PAC – Secretaria de Estado da Cultura, fazendo o livro circular através de seu projeto de distribuição por contrabando.

É doutora em Letras, ministra oficinas de criação e cursos sobre arte comtemporânea e, como diz, “faz o próprio pão, a própria cerveja e mora com seu cão”.

Conheça mais de seu trabalho em www.anarusche.com

 

 

 

O POEMA BRANCO

e ela montada
no topo da bicicleta ergométrica
uma caixinha de música
laqueada como gelo
a rodar, a esperar
a agulha hipodérmica de endorfina
para capar seu coração.

um romance raso.
eu queria ser um esquimó
mas entre uma faísca e outra,
o frio da estroboscópica,
a solidão me dá picadas
uma cocaína negra com mel
que me anima.

minhas mortes são semanais.
em lençóis alugados por pernoite
no degelo de teus cabelos negros
de latin lover

e como você faz a tantas donzelas
teus dedos apalpam
minha pequena morte úmida
e lhe aplicam um
grito seco na canção de rádio pela tarde
olhos pretos cheios de branco

mas agora é escuro
pela pia de mármore duro
ela derrama a borra de café
que se transforma em terra
e embala os natimortos de nossos sonhos

um romance raso.
e ela entediada roía unhas
na internet os esquimós
seus pés assustadoramente descalços.

 

(do livro: Sarabanda. São Paulo: Editora Patuá, 2013.)

 

UNABOMBER

O Unabomber, herói da minha infância,
me disseram: é um pouco afeminado
tal filho da vizinha, é um drogado,
mas encanta com pompa e circunstância

Eu pagaria para chupar seu pau
que é dinamite dura, alta e robusta,
cano que explode o cu dessa velhusca
e goza nos destroços, triunfla.

O Unabomber, secreto agente da CIA,
é patriota que ama as coisas rubras,
sua porra bazuca faz magia

e prolifera em muitas criancinhas
que ao rugir das metralhas ficam surdas
mas depois estraçalham coleguinhas,

 

(do livro: Sarabanda. São Paulo: Editora Patuá, 2013.)

 

 

A CASA DE REPOUSO – MONÓLOGOS

I.

Esses são meus amigos
Deixe que os apresento

II.

As flores azuis me chamam na porta
É sim uma piscina, não me acreditariam
Obrigado pelos cigarros.

III.

Pensei as flores sem cor, com o nanquim que me
trouxeram
Era daquele número da revista, aqui está
O problema é que minhas mãos coçam, elas me
Escutam

IV.
O amor que ela me
deu virou aço e me enforcou
me vigiam
tomei banho de piscina e sol. não aguento as cor-de-
rosa

V.

As carniças de sempre
Não eram picadas de pulga
Coçavam

VI.

Hoje pergunto
que não esqueci das flores

Os muros continuam altos

Só posso dizer que adorei as flores

 

(do livro: Sarabanda. São Paulo: Editora Patuá, 2013.)

 

 

REVENANT

minha mãe foi morta num século de entranhas
quando os pássaros escuros
emprestaram do solo o aço para suas asas

e as filhas que criou para a terra
foram em minissaias cheias de batom e dentes
para os soldados e empresários

e os homens que amou sobre o barro
foram em busca de mulheres de revista e gravatas
sumiram com as bombas com as fábricas

mas agora nossa mãe retorna

com a pestilência de um cão amordaçado
para degelar e beber todas as neves eternas
para assassinar todos os homens e galinhas da China

 

 

(do livro: Sarabanda. São Paulo: Editora Patuá, 2013.)

 

 

O GRANDE PLUGUE

À nossa geração nunca nos foi permitido ver o
mar pela primeira vez.
Ele sempre esteve adentro, reluzente, o grande
igual que nós mesmos

Rogamos tanto às noites que se faça novamente o
escuro
mas quando as preces são atendidas
é só uma ilusão dos trouxas, uma ardentia nos
olhos e
o mar esbraveja aqui dentro, monstro comedor
de rocha

Já nascemos umas baleias mórbidas
pobres diabas afogadas neste papel de luz
E é tão mesquinho de pequeno o desejo

A gente só queria ver o maldito mar
por favor,
pela primeira vez.

 

(do livro: Nós que adoramos um Documentário. São Paulo: Ed. Ouriversaria da Palavra, 2010.)

 

 

SÃO ESSES DIAS DE LUA

I.

mas a escola não fixou na nossa cabeça as capitais
do mundo
digito capital honduras
logo resultados de notícias para capital honduras
logo Cresce pressão para o retorno do presidente
logo Tegucigalpa isso da infância decorada à
força
digito capital iêmen
logo Mundo – Iêmen diz que avião que caiu no
Índico
logo Os passageiros fizeram então uma escala em
Sanaa
nãp nos recordamos. o Iêmen não existia na
quarta-série
e jogam toneladas de flores no Atlântico ao avião
da tal da airfrance
para que Iemanjá feche os olhos de quem já
dorme
para que Iemanjá pense que é ano novo
novamente
– Venha cá, Moonface
não se vá
diga-nos mais uma vez teus passos de lua
mais uma última vez que somos o mundo
que somos as crianças que você tocou
this is thriller, this thriller night
o bumba-meu-boi se foi seco
o boi da cara preta agora se pintou
carantonhas da ternura branca
Diga-nos mais uma vez que somos o mundo
Baleias sonham tristonhas
queria muito voltar às estrelas
hoje nem mais vejo nenhuma
além-teto, além-nuvens sujas
mas ouço as pequeninas na constelação
abóbada do crânio, me chamar aberta
meu cérebro então flutua como um bebê
alienígeno com desejos de casa, de conforo
paira como uma arraia-jamanta no azul profundo
o coração bate alhures só que parece sempre
tarde
muito tarde a um embrião já nascido longe
às pernas, que lembram árvores,
receitaram condutores de luz
mais luz e ainda abriram as janelas
mas não adianta, nada adianta
se a abóbada cede aos escombros de sangue
e há novamente uma tempestade
a te comer útero a dentro
pq a vida é sempre quem guarda a melhor fome
a lamber os próprios planetas em luz
cantam todas estrelas e voam, voam
por favor, Rainha, nos faça todos em ano novo
novamente
no seu mar, esse tão branco, tão cheio das letras e
respostas
digito Rainha, logo os resultados são tão
estranhos, apócrifos

II.

chove e eu queria que me internassem
aí vc iria me levar uns docinhos, pra mim
, me visitaria com a frescura dos que podem ir
desejaria: ei, sorte na vida!
entretanto, foram os teus responsáveis
: me proibiram que entrasse
e logo deram ordens
aos homens de branco e de preto
agora, nem sei mais
levei sempre chocolates às quintas-feiras
sempre roguei pelamordedeus
ai, jesus amado nessa hora de aflição
na certeza de que foi a enfermeira quem comeu os
docinhos.
e nem sei mais se tivemos um nome
nem se fomos um dia qualquer tipo de coisa
mas estacamos ali, porta muda de duas faces
rabiscando nossas iniciais
umas letrinhas na lata dura
até que parasse esse sempre hora de chover

III.

caminhava por onde não devia
em hora ingrata, coisas que surgem
coisas que acontecem, que criam vida
já morta e te engolem mastigadinho
e vc caminha por onde nã devia
com aquele medo idiota de vítima de uns
trocados
tua sorte está na avó das tempestades essa noite
toró que assopra o frio onde jamais haveira
soterra os trópicos e suas felicidades em água negra.

agora patinhando nas poças que crescem em
agressivos
vazios de câncer, metástases do esquecimento
fuligem
nenhuma malfeitora agora colocaria as mãos em
vc
poderia cruzar intacta uma torcida enraivecida,
com seu ônibus a naufragar num ódio estranho,
caminharia entre árvores escurecidas e lameosas
escuridão tão inócua quanto a nota de um real
quando nunca mais circulará, moeda fora de um
país
mas que veio do pó dos ossos serra pelada
que comprará pó de osso branco de menino que
avoa, aviõezinhos
os seguranças também voam, voam rasantes em
capas de chuva
os únicos que realmente sabem o que significa
um terno preto

daí você caminharia por onde não devia
a tremeluzir de frio e segura, tão segura na sopa
de água negra
mastigando os dentes e bendizendo a sorte
e agradecendo, agradecendo, a gente tem que
sempre agradecer

 

(do livro: Nós que adoramos um Documentário. São Paulo: Ed. Ouriversaria da Palavra, 2010.)

 

 

O QUEBRA-CABEÇA

“- Podia-me dizer por favor, qual é o caminho para sair daqui? – Perguntou Alice.
– Isso depende muito do lugar para onde você quer ir. – disse o Gato.
– Não importa muito onde… – disse Alice.
– Nesse caso não importa por onde você vá. – disse o Gato.
Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas”

não ligava mais para suas bonecas
tampouco aos apelos da mãe para comer pudim
concentrava-se em seu puzzle
dia após dia envergada sobre a mesa

as mãos tão pequenas, os pés descalços
os olhos fixos com uma boquinha semi-aberta

quando ficou pronto
olhou estarrecida

e devorou todas as pecinhas até vomitar

 

(do livro: Rasgada. São Paulo: Edição de autor, 2005.)

 

DELICADEZA

meus desejos,
que me imobilizasse
com fitas brancas de cetim
para que elas me deixassem
talhos e cortes na carne.
mas ele me amarrava
com cordas grossas e ásperas
e me largava com nós frouxos.

meus desejos,
que me espancasse
com uma vareta de marfim
e quebrasse todas as minhas costelas,
não eram dele mesmo?
mas ele me macerava
no chicote macio de couro
que me marcava com lanhos engraçados.

meus desejos,
que me esquartejasse
com quatro alvos corcéis
e me desfizesse em pedaços.
mas ele me penetrava,
me xingava,
fazíamos amor e
suspirando, dormíamos sem sonhos.

 

(do livro: Rasgada. São Paulo: Edição de autor, 2005.)

Primata

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