Maria Giulia Pinheiro

Maria Giulia Pinheiro é autora de Da Poeta ao Inevitável, pela Editora patuá (2013), Alteridade, pelo Selo do Burro (2016), e dramaturga dos espetáculos Mais um Hamlet, Alteridade e Bruta Flor do Querer. É fundadora do grupo Companhia e Fúria, em que atua, dirige e escreve. Formou-se jornalista pela Fundação Cásper Líbero e atriz pelo Teatro Escola Célia Helena, especializou-se em Roteiro para TV na Academia Internacional de Cinema e é pós-graduanda no curso “Arte na Educação: teoria e prática” – ECA/USP. Nasceu em São Paulo, SP, em 28 de maio de 1990. [Biografia retirada e revista do livro Alteridade.]

 

magiu

 
 
POETA

Quando chegar,
não vou saber que você é você.
Deixarei entrar,
aos poucos,
cedendo à poesia de viver ao seu lado.

Colocarei avisos e barreiras:
“Favor no caminho não alimentar minhas obsessões”.
Direi:
“Sei amar.
Às vezes, demais”.
Você rirá e entenderei silenciosa que
meu amor é meu.

Vamos ensinar a respirar longamente,
a não esperar,
a ver,
a analisar:
Sujeito-Sujeito.

Você vai me arrancar a pele
(vai doer).
Vou lhe jogar meus ácidos
(vai doer).
Nós vamos fazer Amor da nossa carne viva.

Sem sangue.
Putrificação –
– Pure-fazer –
– Purificados.

As novas camadas que vão nos cobrir
(nosso amor será destruição-construção, nunca reformahábito)
serão sublimações ético-afetivas.

Você vai me dar impressão de analfabetismo ficcional,
por fazer da realidade mais bonita do que as minhas criações.

Um dia,
só um dia –
não hoje do nosso futuro criado -,
vamos dizer:
“Agora é fim”.

Cada um para o lado,
desconjuntados,
solo
próprio.
Marcas de raízes profundas que já não capturam nutrientes,
mas existem enquanto resquício de caminho.
Então, novas buscas de novas poéticas.
Sozinhos e tatuados por versos concretos.


DONO DE CADELA

Minha vaidade é a
de um cão que passa
a tarde brincando na lama,
depois sobe na sua cama
e mostra orgulhoso o dia que viveu.

Mas você é sempre o dono
que me leva à petshoppings
para colocar lacinhos
e me passear no colo.

Se não fosse meu
rabo insuportável
balançando sem parar
quando você chega,
talvez eu fugisse pela
fresta
do portão
mais próximo.

INEVITÁVEL

Ia acontecer, eu sei.
Só não achei que fosse
tão agora.

Pensei em você o dia todo,
falei de você,
como de costume.

Quase por encanto,
adormeci
e foi como se um
homem alto, forte e destemido
me soprasse os olhos
e tirasse deles
toda a areia que havia.
(A gente sabe que areia nos olhos,
no fundo,
é mais incômodo
do que prazer,
não sabe?)
Quando acordei,
deu vontade de ligar para
os ex-namoradinhos e saber sobre suas
sextas à noite
e às ex-namoradinhas sobre os domingos de manhã.
Deu uma sede de cerveja,
tocou música alegre e,
– vê se pode -,
dancei.

Quando percebi,
estava fazendo piada com quem não conhecia direito,
pensando nas guerras pra lutar,
nas camas pra dormir,
– acho que perdoei só para que não perdurasse –
e depois me perdi nos meus pensamentos
porque minhas horas voltaram a ficar tão interessantes
que não há mais o que não é presente.

E é tanta coisa pra fazer
e eu agora tão cheia de
mais tempo,
mais espaço,
mais vontade,
mais gasolina,
mais eu.
Sabia que ia acontecer,
mas não achei que
tão agora.

PÓ NO VENTO, UM AUTORRETRATO

Deus tem tentado falar comigo,
mas não estou pra ninguém,
que preciso de silêncio.

O vazio tomou conta de mim,
me vestiu de dentro pra fora:
só queria um cantinho meu
pra me pintar de escuro
em paz no sol,
chorar na grama
e me entediar de mim.

Só queria que o furacão que nunca passa
me levasse embora com ele.
Me arrancasse da vida
qualquer coisa de íntima.

Mas tão carente, tão carência, tão falta, tão ausência, tão tentativa e erro, tão domingo de manhã e segunda à tarde.
Vestida de vazio por dentro
e de solidão nas partes ocultas,
esta roupa dá alergia
e coceira
e arde
e arde
e arde.

Não consigo arrancar meu tapa-sexo de solidão grudado de suor em mim.
Cadê o deus-salvador que não se mostra logo?
Só me chama, me chama e eu já sem tempo de ouvir, me coço até virar pele descamada,
poeira.

Esses crentes não entendem.
Eles andam rápido e conservam qualquer coisa de
ferro
enquanto sou

o

que
fui
e
poderia
ainda
ser,
ao vento,
alheia
à matéria
humana.

Talvez, minhas cicatrizes e manchas.
Meus pudores.

(Sai minha alma do estado azul de mim!)

Se fosse mais magra,
Se fosse mais calma,
se não fosse eu.

Se não fosse a solidão,
Se não fosse a agressão,
meu medo da morte.

Se não fosse a espera constante pelo abandono.

Talvez se fosse meus pais.
Se não fosse tão grande,
Se adequasse,
Se não sofresse,
não cantaria eu,
não sobraria eu,

não seria
só pó

TALVEGUE

Rio de dores
que desaguam
em um leito
só, eu,
e afundam
minha paz.

Um pouco de amor,
lhes imploro,
antes que apodreça
qualquer vida e beleza
em mim.

Qual carne
possível
margeia
meus
desejos?
no vento.

Torço
não secar
para sempre
diante deste
sol e dão
-me
mãos de afago
o que ainda
sonho
confluir.

Brota
nascente
de humor
no peito,
engordo os afluentes
em que não flutuo
mais e
fito abstratamente
a lua se pondo,
deitada,
sobre mim.

SOLIDÃO

Povoei meu próprio deserto
com amores que nunca vivi,
lugares,
sentidos
e rostos
que nunca frequentei.

Construí catedrais imensas
de religiões
que não entendo,
rezei para deusas
em danças esquisitas
e desfórmicas
com preces
que acalmassem
as dores
que nunca tive.

Entre corpos,
sigo
sem espaço
para conversas que
entretenham mais
do que as piadas que
os anõezinhos que vivem dentro de mim
contam,
incessantemente,
ao observar bocas
nos trens,
bares
ou casas
por onde meu espectro transita.
Uma nuvem preta terrível,
porém,
cobriu
todo o povoado
de meu deserto particular inventado
quando não houve sequer um par
de lábios
que sorrissem
pela promessa
falsa
de penetrar
meus mundos
interiores.

(do livro Da Poeta ao Inevitável. São Paulo. Editora Patuá: 2013)

PRIMEIRO CÍRCULO – 240 SEGUNDOS

Escalo até o topo de um monte de terra.
Vejo um homem de terno entrar. Paro.
Ele caminha um círculo ao meu redor.
Chove em mim.

Silêncio de vagar em ziguezagues concretos,
em meios-fios imaginários,
entre sons.
Como se boa parte do meu corpo fosse uma
biópsia

Dor ante.
Ele caminha mais um círculo em mim.
Você já sentiu isso? Nada. Completamente vazia, com
uma arma dentro de mim, apontada no meu sexo, pronta
para explodir.
Vaza.

Uma bolha de água na boca muda.
Ele caminha mais um círculo ao meu redor.
Posso ouvir ainda. O carro. Posso. Nada. Vazia.
Só a arma dentro de mim, pronta para atirar e eu
quietinha quietinha quietinha quietinha quietinha,
não atira, Moço, que saí de dentro de mim e não quero
morrer assim, só corpo, só. Quietinha quietinha,
imóvel, ninguém na mente, nem Deus. Me salva dessa,
Deus, me ilumina. Sem morte na arma. Por favor. Deus.
Sem fim pra sempre. Nesta arma quente úmida que me
invade. Sem isso.

Ele caminha outro círculo em mim.
Foi sem querer, Deus, me perdoa. Isso não. Não me
deixa morrer agora, por favor, só corpo. Não me deixa
vazar. Não me deixa guardar. Não me deixa adoecer.
Não. Quero morrer alma, Deus, e ser alma com uma
arma dentro de mim, quietinha quietinha quietinha.
Não! Não consigo.

Ele caminha mais um círculo em mim.
Deus, por favor. Sinto muito. Quietinha quietinha
quietinha. Sinto muito. (Por favor.) Não. Por favor. Faz
ele desistir dessa arma, do braço no pescoço, do sopro,
do aperto, do escuro. Por favor.
Está escuro. Um ruído. Um ruído devagar. Passa. Uma
luz. Uma fresta. Passa. Um silêncio. Um.
P a s s a d e v a g a r b e m b a i x o u m a l g o p o r n ó s .
Mais um círculo em mim.

Não me vejam, por favor, que vergonha, fui eu, desculpa, fui eu que passe aqui agora, quietinha quietinha, juro, sem ninguém aqui. Desculpa. Passo sempre, mas hoje, hoje, hoje: tudo o que veio a mim sem que eu procurasse. A arma fora de mim. A arma sempre apontada pra mim. A arma cansada mas mas mas mas mais mais mais mais mas mas mas mas mais mais mais mais forte que.

Ele caminha o sétimo círculo de mim.
Ele termina e recompõe o terno.
Ele caminha.
Ele é dele.
Ele se deita à frente, abaixo, num caixão de vidro
transparente.
Tampa e fecha.

Para de chover.

(do livro Alteridade. São Paulo. Selo do Burro: 2016)

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