Armando Freitas Filho: anos 1960 e 1970

Armando Freitas Filho  nasceu em 1940 no Rio de Janeiro e estreou em 1963 com Palavras, editado por conta própria com ajuda do amigo José Guilherme Merquior. Escritor compulsivo, publicou e continua a publicar uma vasta obra poética, marcada pela  ampla imaginação e musicalidade em seus versos singularmente controlados. Dada a extensão e qualidade de seus livros, resolvemos dividi-los em uma série de postagens.

Nesta primeira, selecionamos alguns dos nossos poemas preferidos de seus cinco primeiros trabalhos: Palavra (edição particular, 1963), Dual (edição Práxis, 1966),  Marca registrada (edição Pongetti, 1970), De corpo presente (edição particular, 1975) e À mão livre (1979, Nova Fronteira).

armando freitas filho
foto: Cristina Barros Barreto

poemas de Palavra (edição particular, 1963)

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1

No branco
o susto!
da coisa não sendo

lousa louça
giz traçando objeto
sem objeto, gás:

gonzo? ganso?
hesitando entre
a porta e o lago

silente muro
de cal, asfixiado
por um lençol

cai
pedra
de pano
penso.


NOTURNO

O sono retém meu corpo
que segue
de vidro
sua rota aeronáutica.

braço confuso
de músculo difuso
pele noturna
sem trama diurna
a carne se parte
presa na fronha
e sonha:

estilhaço de sol
risca
na retina apagada
faísca
batendo em água surpresa
acesa

espanto

barranco de pano branco
tranco
à beira do abismo
que o escuro repete.


POEMA

A foice
entreabre
face, lenta.

Enlace abafado
de carne, água
pedra, suspiro
lagoa de seda
esgarçada

respiro.

Ar e rochedo
esculpido
no ofego.
Monstro, minério?

Entoando seu rígido canto
de treva agrura
pasmo e mistério.


SONETO

O sexo imprime no corpo
a velocidade de outro corpo:
camaleão partido em silêncio
leão de bronze, flagelo

roendo a praia da carne:
unha e garra quando onda
doem na areia, pele adentro
rosto sem pausa no vento.

Abismo de louça escavado
fracionado pelo espasmo
o leite rosna abafado.

Sono ou sonho decepado?
Vácuo, escalo, resvalo
longe de mim, fraturado.

poemas de Dual (edição Práxis, 1966)

dual

RESSONAR
para Cassiano Ricardo

A noite arquiteta
um teto, uma casa

pensa uma porta
repensa um portão

e planta parede
e tranca o jardim

seu sonho de nervos
entranhado no muro.

Verde sono: calado
coagulado sangue

cerâmica – absorto
vaso sem veia

sem pulso, esbatido
absorvido arbusto

embuçado esboço
embaçado, embutido

estojo, lavrado
lacrado no escuro.

RAIOS X

Magro e amargo
um corpo distende
cercado de treva
tato mais dente.

Rebenta a flora:
trevo de carne
travo de terra
segreda: sente.

Um braço
que abraça
uma perna
que arrasta.

Corpo – um furo
segrega rente
o corpo futuro
germina: doente.

FIGURAS

Só sob o sol sua
o sertão sem sombras:
vasto vazio vácuo
voa o espaço, vão.
O pé apalpa léguas
longes e lajes
vias veredas vãs
absorvem o homem
seu sumo sugam
seu húmus, some
a soma dos músculos
os nós dos nervos nus:
corpo de caixas ocas
súbitas quinas cúbicas
rígida síncope fixa
peito de tábuas tenso
pernas de pranchas presas
tesos braços de pau.
No chão uma tampa
no topo um teto
na terra sem tato
cai caixote caixão.


TÊNIS

Sai o saque
seco
estampido baque
segue o som.

Nítido ritmo
nu: tímpano
célere sílaba
súbita, soa.

Volve elástica
ríspida raquete
detona um tom
repete o golpe.

Quica na quadra
bola – bala
brusca
dicção ginástica.

Volátil exercício
fugaz
vibrátil lance veloz
nívea imagem ágil.

Tênis teia tênue
malha
tátil erro na rede
rasga nua nesga

falha.


poemas de Marca registrada (edição Pongetti, 1970)

marca registrada

SONOTECA

A droga do dia
adia o drama:
a drágea desce
o homem dorme.

Um sono ensaiado
sem saídas – som
bulex sem sonhos
ressona, sonado.

Viagem ao vácuo
movida a valium:
visita os vazios
e as visões do avesso.

Apalpa a polpa
do corpo em pane:
a pílula apaga
as pilhas, pifam

os sinais do sangue
e seguem, às cegas
as senhas do sexo:
sequência de setas.

O código do sono
fechado no cofre
do corpo encadeia
a cápsula sem chave.

A vertigem no vidro:
o invólucro envolve
a vida – envelope
comprimido no corpo.


SENSORIAL

para R.

Pulsam os corpos:
plantas de sangue
sufocadas no chão
sem sol, soluça

sem som a seiva
latejam as setas
do amor na terra
da carne amarga.

Costuradas celas
de pele e de pedra
prisão de treva
trançada, travo.

A mordaça amarra
o beijo à beira
da boca um trevo
se tece e morre.

A luta
avança em lentos
lances de corpos
nus: subterrâneos

de seda em transe
o tato do terremoto
esgarça os tecidos
e a teia subcutânea

estremece à tona
de terra, explode
expande e escapa
se atira no espaço

um ramo que afere
seu rumo florido:
flecha de folhas
sem fim – fincada.

VIDA APERTADA

Em transe a cidade
acorda, trepida
o tráfego na rua
crescem os prédios.

Gestos de pedra
a pino impressos
no espaço: planos
pavimentos fixos.

Pulsam as avenidas
escoa a circulação
artéria de asfalto
palpitando no chão.

O povo se aperta
na prensa da pressa:
a vida espremida
se esvai, no ar.

Curvas que correm
rampas sem rumo
retas sem ritmo
as ruas se rompem

na flexão do cimento
e lança a ladeira
que avança em lajes
lentas: sem fôlego

o povo no impasse
não passa da porta.
Estanca esfalfado
seu fluxo e sufoca.

Tensão nas tocas
estanques – tantas
trancas e trevas
nas casas de todos:

pressão.

poemas de De corpo presente (edição particular, 1975)

de corpo presente armando freitas filho

CINCO SENTIDOS

1.

No meu olhar o recorte
da sua figura – sinal:
o afiado gume do corpo
e da linha que o desenha

lento, em cada tempo
do movimento, sinto
em cada vento, tênue
o móbile de sua presença.

2.

E cheiro em cheio a soma
do suor do sal, do açúcar
desse perfume que acentua
a imagem nua na lembrança
e sigo o rumo do aroma
que respiro na escura
câmara dos sentidos
onde procuro sua fuga

3.

quando, garra, minha mão
apalpa o chão do nada
ou os muros de pele
do corpo que persigo?

Sob a teia do meu tato
sob a veia do meu pulso
sob o impulso da memória
seguro areia ou figura?

4.

E mordo, mastigo e chupo
do centro do cerne da carne
do seu avesso onde mergulho
e bebo o beijo e o gosto

íntimo, nítido, e último
do imo da alma do âmago
do corpo que se desmancha
no espaço da minha boca.

5.

E escapa: mancha de som
esparso na qual o ouvido
capta o espasmo, o passo
da vida, a letra da voz

que se inscreve no sulco
no resgate do sangue: degrau
sob os panos e sob os sustos
do sono escuto seu nome.

ANTITEXTO

Cravado em mim o meu silêncio fala:
folha em branco, exercício do sangue

em cada veia – percurso – pulso de lã
urso de escuro e astúcia que se urde

calado e surdo como o amor se faz:
pedra sob o lago da pele estagnada

seiva, assim, tão silente e cega
como o fio desta faca na bainha

do meu gesto: uma palavra-lapso
no espaço da intenção, vôo mudo

sem céu, feito de chão, e o passo
é de paina e de borracha que apaga

o som das pegadas, rastro de pausas
esperas, nas entrelinhas dos sentidos

uma vida de intervalos espreita
pela lucarna recortada no corpo

por uma lâmina de lacunas, fresta
desvão, onde nada pousa sua ausência

onde ninguém, ode sem voz nem olhos
– um nulo lugar de nãos aonde?

TV VIVENDO

Na página

a paisagem esparsa da palavra:
leque de intenções, golpes
galopes, gole em tantas letras
e sentidos que disparam vozes

estilhaços do que me acontece
e me quebra, aqui, e em toda
parte de mim, no que já fui
e fluiu para o vôo do que sou.

De vidro

a vida que me coube e veste, cerce:
cada dia-diamante que passa é marca
é risco e reta, é cicatriz na face
da pele do meu esforço, até o osso

ou gesso que me arma: desenho a giz
no quarto escuro do corpo fechado:
figuras e fagulhas, slides de mim
muro onde meu eu escreve, rupestre.

Da tela

de que sou feito e me anuncio
cartaz de carne, onde se grava
um tape de cada etapa, um take
de cada passo do pensamento

eu programo o tempo do meu corpo:
frases, fragmentos, medulas
mensagem de músculos e registros
da memória que descubro e dito.

poemas de À mão livre (Editora Nova Fronteira, 1979)

à mão livre


.

Por esta fresta te espreito
Por esta fresta te desvendo

Por esta fresta
cravo
sonda contra esponja,
e babo
e te penetro
teso e reto, e por inteiro
o seu corpo se entreabre:
porta e perna, caixa e coxa.

Por esta fenda
tenda
de pele que se franze,
e rasga
eu me adentro
feito de espera e de esperma:
e espremo – te aperto – e exprimo
toda a cor da carne do amor que escrevo.

Por esta fresta me espreito
Por esta fenda me desvendo.


.

Seu corpo que escancara
gargantalha onde mergulho
minha cara, e gargaralho
nos teus pêlos, nos teus tufos
e me misturo no que escorre
e te mastigo nos teus peitos.
Eu engulo o que está dentro:
a organza do orgasmo, a nuânsia
e tudo range – gargantua –
suareja e gargalhanta
nos teus beiços feito espuma
de onde arranco estes teus beijos
em pedaços, derramados:
boca de sangue, grito e rouge
morde a fera de esponja
que se espoja em cada espasmo
eu te esmago sob a pata
e me esmigalho nos teus braços

gangantalha gargaralha
gargalhanta gargalhada

.

Como um dia perdido
dentro da vida,
como um dia
esquecido na lembrança
que abandona
todo o seu vento,
o tanto de sol
que entra no pedaço da tarde
parada sobre o quintal
este dia,
se repete
entre tantos
e chega
até a mim
repentino,
com a sua sombra a esmo:
o mesmo vento,
o mesmo sol que bate
na mesma tarde e anda
no chão de agora,
perdido
como o dia dentro,
como o dia de antes,
com a sua luz que alcança
a vida
deste momento.

MR. INTERLÚDIO

Quem sou você
que me responde
do outro lado de mim?
Quem é que passa
invisível
pelo espaço da sala
e vai
do meu corpo
a este outro,
em emulsão ou emoção
instantânea,
feito como eu mesmo,
de repente,
em noite antiga
e não perde
nessa viagem
o tempo que perdi,
e, no entanto,
os dias que me fizeram,
estão ali
correndo em suas veias?

Entre mim e você
que sou eu
simultâneo,
quem sou?
O que se fez,
enfim, nesse intervalo
onde minhas coisas
todas
(e são tantas)
pousam
na poeira do silêncio
o segredo de sua carga?
Aqui estão, portanto,
os achados e os perdidos
o que guardo ou abandono,
os vários ecos
descobertos,
as minhas sombras
que vou deixando
como roupas apagadas
que despi,
meus fantasmas de pano
e luto
e me debato
nas paredes,
pelo quarto
tão fechado e escondido
como o caderno de rascunho
feito de papel e de memória.

E nunca estou onde procuro
e mesmo agora
o que encontro mais de meu
é apenas
o relógio que marcha
e marca a hora
fora do meu pulso,
é a fumaça do cigarro
que permanece se movendo,
é o lugar
que pouco antes
minha cabeça
(ou foi meu sonho?)
ocupou no travesseiro.

E o vento
não mais hesita na janela
e entra
casa adentro
no acaso do seu voo,
e bate as asas
no corredor,
e bate
a porta,
até então,
entreaberta.

Quem sou você
afinal
que me repete
do lado de fora de mim?
Quando me voltei?
Como andei até aí,
sem desgaste,
sem me ver
e agora me vejo daqui
de onde permaneci?

O que sou
não sei
como me fiz,
assim,
ao longe
e não me alcanço
toda vez
quando escapo
sem lembranças ou flagrante
e vou
e voo
e vejo em toda parte
essa vida que se ergue
interina
e passeia
seu corpo clandestino
que é o meu
no chão de cada dia.

O que sei
não sou
pois me esqueço
tudo o que me fez
por dentro:
o princípio
o precipício
tudo o que está perto,
todo o avesso,
tudo o que de cor
o coração repete
entre relâmpagos
no meio de mim
eu não me escuto,
e o pensamento
só persegue
o que está entre
os dois instantes
em que me percebi.

Entre os dois intantes
a distância é a mesma
da folha de um livro
para a outra que se segue:
de mim para mim
na falha desse espaço
onde só cabe
a lâmina de uma faca
o que se passa?

Que existência é essa
que avança e pergunta
a cada linha
de vida conseguida?
O que faço ali
vestido de outro,
ao contrário de mim,
pois o coração
bate sob a pele da camisa
no lado oposto do meu?

Como cheguei lá
se o pé não se fez passo,
se o breve ar que me separa
é, somente, o de uma respiração
para outra
que chega
e embaça
e apaga
uma possível ponte
que a imaginação fabrica
e não sustenta
a estrutura de breu
e bruma
que vai desmoronando
suas impossíveis pedras de algodão
nessa pausa mínima
entre mim e você
que escreve,
com a mão esquerda,
o que não sei,
o que, com certeza, não escrevo,
e nem jamais escreverei aqui?

Primata