Rogério Skylab: Debaixo das rodas de um automóvel (2006/2020)


Rogério Skylab é uma das figuras mais expressivas do cenário alternativo brasileiro. Carioca, é conhecido principalmente por suas composições, distribuídas numa extensa discografia, iniciada com Fora da Grei (1992). A maior parte dos seus registros musicais é conceitualmente arranjada em séries: Série dos Skylabs (I a X), Trilogia dos Carnavais, Trilogia Skylab & Tragtenberg, Trilogia do Cu e Trilogia do Cosmos – sua produção mais recente e ainda não completamente lançada.

foto por: Solange Venturi


Os poemas a seguir foram selecionados do livro Debaixo das rodas de um automóvel, lançado em 2006 pela Editora Rocco, e reeditado pela Kotter Editorial em 2020.



VITRINES DE DOMINGO


Moro entre coisas efêmeras
num quarto de pensão impossível.
Ontem cedo matei dois ratos.
Aí está minha metafísica.

Sou um poeta errado.
Consumi muito de minha vida
deitado na cama e me masturbando.
Escrevo só para fazer de conta que vivi.

Olho pela janela do quarto
as vitrines fechadas da cidade.
Amanhã estarão repletas de luzes,

mas hoje adormecem como se ninguém as visse.
E mostram-se taciturnas, absurdas,
essas vitrines de domingo que eu olho tanto.



DESAVISADAMENTE


Você que, desavisadamente,
como quem escorrega numa casca de banana
e cai, se encontra aqui, defronte a mim,
a mente e o coração vazios.

Sei o quanto isso te amola.
Sei também quanto teu tempo é precioso.
Mas espera um pouquinho.
O soneto já vai acabar.

Estamos entrando na reta final.
Viu como nada disso te faz mal?
Creia em mim.

Estamos nos últimos momentos.
Não quero dizer coisa alguma
senão “muito obrigado, até nunca mais”.




UM CÉU DIÁFANO


Uma nuvem diáfana percorria o céu
seguida por muitas outras.
E eram tantas que pareciam ilhas
flutuantes a singrar mares.

Iam ao sabor dos ventos
até formar um continente,
cuja língua todos conheciam
e era um bálsamo para os ouvidos.

Assim ele ia divagando
enquanto a ambulância não vinha.
E já nem sentia suas pernas esmagadas

sobre o calor insuportável do asfalto.
Um pivete aproveitava para roubá-lo
e ele para mirar o céu diáfano.



CALDO DE CARNE


Já que existe a poesia de João Cabral de Mello Neto
– estranha pedra bruta
que machuca os dentes –
quero que também exista

a poesia-água – aquela que desce
pela garganta e não arranha,
não cheira e não tem cor.
E sendo assim tomada

em goles rápidos e grandes,
não se imagina o contrário.
Seu efeito retardado

trai nossa primeira impressão.
Não era água que tomávamos.
Era caldo de carne em putrefação.


ERA UMA VEZ


Felizes os que têm fôlego
(romancistas, dramaturgos, roteiristas).
Minha estética é a falta de assunto.
Sonetos que não dizem nada.

Procuro uma estória.
Quero contar alguma coisa que possa te entreter.
Cheio de nostalgia escrevo: era uma vez.
E repito novamente: era uma vez.

O tempo vai passando
e não encontro nada que possa te dizer.
Então, ensandecido por um imenso vazio,

faço dessas três palavras
o sentido de toda minha vida:
era uma vez.






Primata

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