Sergio Cohn: Um contraprograma (2016)

Sergio Cohn nasceu em São Paulo, em 1974, e mora desde 2000 no Rio de Janeiro. Criou a revista de poesia Azougue em 1994 e em 2001 a Azougue Editorial. É autor dos livros de poesia Lábio dos Afogados (Nankin, 1999), Horizonte de eventos (Azougue, 2002), O sonhador insone (Azougue, 2006), O sonhador insone – poesia 1994-2012 (Azougue, 2012), Esse tempo (7Letras, 2015) e Um contraprograma (Patuá, 2016).

 

 

Os poemas a seguir foram selecionados do livro Um contraprograma (Patuá, 2016).

 

 

 

UM POEMA PARA ESTES TEMPOS

 

(começando com um verso de Jodorowsky)

 

se estamos perdidos
melhor não andarmos tão depressa
para não sermos presas
dos próprios passos
melhor o silêncio, observar
a estratégia de quem já
conhece esses espaços:
pássaros onças outros
olhares de soslaio
sabendo que alimento e que veneno
nos espera na beira desse descaminho
não há mais nenhum Virgílio
para nos guiar
mas veja: nada aqui é novo
nem mesmo labirinto
e nunca estivemos realmente sozinhos.

 

 

.

 

a concha que se agarra à pedra
contra a fúria das ondas.
o dente que se cerra na carne
dura da maçã. o azul que resta
entre nuvens, entre folhas,
a primeira luz da manhã.
o pulsar, gesto
e jenipapo, orla de fogo
no mato, mancha
no dorso da onça.

 

ESTAR EM VOCÊ COMO

 

 

TRÊS FORMAS DE AMAR

 

MAR

 

o mar é a fera em si
corpo revolto
imenso, impossível
de abarcar,
demanda toda atenção.
mas quem dele não tira
o olho, se perde da
razão: em fúria
é indomável,
em calmaria labirinto
(azul sob azul,
nenhum deserto
é tão sucinto).

 

ESTRELA

 

a estrela é a fera em nós
o desejo anfíbio
de mutar do que somos
a outro –
então mergulho,
desrazão.
a estrela não retorna
amor, silente
é a própria expressão
do não.

 

SELVA

 

a selva é a fera nos outros
a soma de desejos
que faz o seu jogo –
ritmos de corpos
devorando-se
sob a aparente calmaria.
cada delícia é
uma armadilha:
úmida de vida,
transforma quem a ama
em mais um.

 

 

O SONHADOR INSONE (I)

 

ombros, lábios, vapor, pêssego
o favor do esquecimento

um ângulo no espelho
que subtrai do olhar
tudo que é próprio

então mergulho-

a imponderável medusa
restituindo o que pulsa
a um

(o amor como o inferno
não permite medida comum)

 

 

PATHOS

 

O sopro de veneno no ouvido. O jorro
impossível assaltando os olhos. Luzes
intermitentes. Tantas luzes
no azul manto escuro. Um passo,
então silêncio. Uma árvore
se sobressai no mercúrio. O verde
de tantos matizes, a cadência
de tons. Rico universo de uma só cor
e tantas dimensões pressentidas.
Uma árvore. Poderia chamar-lhe
Pau-ferro, Cesalpinia ferrea,
mas é uma apenas uma árvore
à beira do caminho.
Catedral ao avesso, sacraliza o ao redor.
As formas tatuadas no seu tronco,
rostos são estranhos. Uma folha cai.
É possível perceber nosso semblante
em suas nervuras, a reciprocidade
do espanto. Ou sentar-se
a observar os cristais de orvalho,
mônadas no ventre do tempo.
Uma árvore, convite.
Nela ver o mundo,
missiva do imponderável.

Primata